domingo, 31 de dezembro de 2017

Ao Meu Outro Outroeudopassado

Ao Meu Outro Outroeudopassado

Ouvindo The Magician, de Andy Shauf

Resposta a uma carta que escrevi a mim mesma no início de 2017.

Meu outro Outroeudopassado,
sinto muito ao lhe informar que você está prestes a produzir um dos textos mais difíceis que você mesmo escreveu em seus vinte anos de vida, ou em seus quatorze anos de escrita. Não coube tudo. Você passaria anos escrevendo se tentasse fazer com que coubesse.

Chovia no fim de 2016, não chovia? Chovia lá fora. Também chovia no seu rosto. Lembro perfeitamente do ódio e da confusão que rodeavam seu coração doído. Lembro do contraponto – os amores abraçados no banco de trás do carro. Lembro do medo de voltar pra casa, do ódio defensivo que você não achou que fosse capaz de sentir – mas sentiu –, e do medo que lhe provocava aquele ódio.
Não sinta tanto medo de odiar. Odeie. Odeie tanto que não lhe restará nada para odiar. Só não fuja do ódio. Não o mascare. Não tente enganá-lo. É a si mesma que você pensa, agora, que engana. Mas não engana.


Foi um comprimido que resolveu sua cabeça. Não por completo – jamais por completo –, mas de forma radical o suficiente para lhe abrir os olhos para dentro. Para conhecer uma personalidade da qual você não tinha a mínima consciência sobre. Para sentir-se livre para falar, expressar, gritar no meio de um ponto de ônibus lotado na saída da faculdade.
E se esse for o mais próximo de ti que você já se enxergou chegando? E se você amar essa divindade?
É assim que acontece. É assim que se mergulha no abismo.


As festas foram fantásticas enquanto duraram. Foram prova de amor, de lealdade. Foram produtoras da independência, de amizades fantásticas, de memórias surreais e da sensação de ser dona do mundo. Não foi real – mas o que é real, afinal?

Você saiu com louvor do caos universitário. Foi uma despedida extremamente graciosa, majestosa, individual. A sensação de observar o produto final, suspirar e dizer que tudo era seu... valeu os quatro anos, ou mais. Foi esse produto, aliás, que lhe fez adentrar a fundo a maior paixão de sua vida até então – a própria paixão, ou o amor, como preferir. Você conversou com pessoas que jamais imaginaria existirem no âmago de indivíduos já conhecidos, mas não tão conhecidos assim. Foi extremamente belo. Foi gratificante observar o molde que você criou com suas próprias mãos, aquele que duvidaram que você conseguiria criar. Continue moldando o seu próprio mundo, ao invés de tentar moldar a si mesma para adequar-se ao mundo alheiro.


Houve o medo da perda de seu pai. O mais próximo que chegamos do sumiço eterno daquele que você mais ama no mundo. Você nunca mais disse que estava sozinha. Ele está sempre lá. Foi só aquele susto – talvez o maior susto de sua vida até então – que foi capaz de lhe fazer sentir na pele a solidão real. E ela não se aproxima da sensação de ser sozinho.  Ela não chega nem perto.

Houve o término. Observando de fora, talvez ele tenha ocorrido contra a sua vontade. Vocês choraram em sua cama durante toda uma tarde, até as cabeças doerem e os olhos incharem. Vocês dormiram juntos, andaram juntos. Foi dessa dor – que você obviamente não desejava –, que veio a constatação. Não se aprende quase nada quando não chove. Talvez nem baste chover: precisa trovoar, ventar, arrancar algumas árvores pela raiz. Você só sente quando o chicote rasga a carne do cavalo. Ver a sombra do chicote se aproximando não provoca efeito. Não lhe faz correr. Não lhe mata e, portanto, não lhe faz nova.
Seria uma droga se você pudesse escolher o seu lugar. Porque você nunca estaria no mar agitado. E são essas ondas que lhe transformam. Você se auto sabota estendendo os braços sempre na direção daquilo que não pode alcançar. Não é porque você precisa. É porque você é um pouco caprichosa.


Estava quase amanhecendo quando você observou aquele grupo de pessoas bêbadas dançando no quintal. Você as amava. E você sabia que devia estar ali, e que não estaria se o pudesse ter evitado. Foi o conflito que lhe deu, como consequência, a glória. Talvez fosse o que você quisesse – mas não era o que você precisa. Confie no que ocorre. Você vai entender um dia. Mesmo que doa. Mesmo que dilacere seu coração. Mesmo que lhe mate. Você vai entender um dia. Mesmo que demore.



Teve a paixão, também. Foi puro, extremamente belo, no momento exato. Lembro sempre daquele quarto. Lembro das sobrancelhas que franziam enquanto o anjo citava Nietzsche. Lembro-me da paixão por Cobain, do corpo mais perfeito que já beijei – do topo da testa até os ossos salientes da bacia. Houve os cigarros, as drogas, o sentimento de segurança mais rápido que já lhe aconteceu. Ele lhe salvou, você o salvou. Vocês viram seus filmes favoritos juntos. Ele gostava dos tons amarelados de Lars von Trier. Sua mente era caótica. Você aprendeu a amá-la. Você sente sua falta.


Os amigos. Muitos. Talvez as pessoas mais bonitas que você já conheceu num período temporal razoavelmente curto. A lealdade traz recompensas particulares mais valiosas do que qualquer outra coisa. Eu não trocaria todas as riquezas do mundo pela entonação relaxada da voz de quem me fala calmamente de seus sentimentos. Não trocaria cristais pela sensação de estar no lugar onde deveria, ouvindo quem deveria. Não trocaria. Eu sou assim, também.

A tempestade passou.
Você sabia que passaria, não sabia?
É aqui que você deveria, deve, deverá estar. Tudo que ocorreu serviu para lhe trazer – mesmo que violentamente, contra sua vontade egoísta – para esse lugarzinho iluminado. Esse lugarzinho exato, divino. Esse lugarzinho seu, maior do que qualquer lugar ao qual você já pertenceu antes.
Você sempre soube que só havia beleza verdadeira no vermelho violento do sangue.

Agora, sinta sangrar.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Íris

Íris

Hide My Face, Acid Ghost

Uma de suas íris é estranhamente inclinada à parte interna de seu olho. Foi um detalhe que demorei a perceber, capturado enquanto meu nariz tocava o seu. Em sua cama, eu lhe utilizava de travesseiro enquanto segurava seus punhos acima de sua cabeça, grudados no colchão. Aquele milimétrico estrabismo foi uma surpresa engraçada, que me conduziu a amar beijar suas pálpebras fechadas.

Foram os olhos que me encararam de volta, para dentro da alma, quando busquei segurança nas palavras que me consolavam, dizendo que ninguém iria embora. Ainda dilacera pensar que, por vários segundos, eu encarei aquela segurança firme defronte ao espelho, que refletia seus braços em meu entorno. Foi triste lhe ver indo embora naquela noite doída. Lembro de meu corpo doente, segurando sua mão fragilmente no trajeto de carro até a rodoviária.
Quando devaneio sobre a não-reciprocidade amorosa, penso em como sua mão pendeu por entre meus dedos enquanto eu resistia em soltá-la. Seu olhar, sólido, fixo no meu. Aquela força presencial me engana profundamente. Indecifrável.

O transtorno mental que assombra e deforma minhas memórias, transformando em pesadelos constantes meu tom de castanho favorito, algema meu desejo de esquecer as noites turbulentas em torno de meu conceito de “presença”, incompreendido por ti.
Doía e dói, brutalmente, o brilho que só retornava aos seus globos oculares ao mencionar outro nome, diferente do meu. Sorria defronte o impacto, encorajando-o a seguir. Chorava em segredo sob os cobertores, sentindo-o cada vez mais longe. Doía e dói, irracionalmente, que o ser abrigado por ti naquela noite de crises violentas, não podia ser eu. E dói, doía mais, sua indiferença e certeza de que, de longe, você não poderia me auxiliar satisfatoriamente.  Era meu corpo que trincava enquanto, com suas mãos, você juntava os cacos d’outro ser.

Transborda portar, nos olhos, o oceano de sentimentalismo onde mergulham estas partes possivelmente mentirosas de minhas lembranças. Onde se sentem as saudades que, quase sempre, ameaçam não ser devolvidas. As mesmas que me dão medo sobre o esquecimento defasado da feição daquele que foi minha casa. Da voz que me sussurrava amor. Das mãos que aqueciam as minhas. Do cheiro do cabelo dourado. Dos olhos. Íris. Pupilas que me encaravam.

Eu continuo com medo de mim.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Astrais

Astrais


Da canção que adquiria um formato espectral, atravessando as paredes do quarto, vindo se hospedar nos meus ouvidos. Da voz aguda que, subitamente, despertou as memórias que queimavam na parte mais funda da mente.  Tentei guarda-las depressa, fugindo entre os cobertores que não me permitiram dormir. Em minha cabeça, a armadilha insuportável e recorrente de lembranças aterrorizantemente detalhadas que eu tentava estancar. O medo de contaminá-las com a mágoa vaporosa emitida pelo sangue fresco do trauma.

A pureza da qual sentia falta. A expressão confusa do rosto que vi pela primeira vez. E como aquela voz se arrastou pela minha cabeça todas as noites após a primeira. O som limpo do violão triste, e a suavidade do corpo que, às vezes, o carregava nas costas. O sorriso que machucava minhas bochechas, e a paz que se estendia sobre minha alma inquieta após tanto tempo só. As flores no seu cabelo. As fotos antigas que me assombravam por não terem sido deletadas. Meu pequeno príncipe, seu casaco azul. O disco de 1973.

Todas as noites fora da classe. As árvores, os bancos de concreto. A última prateleira, que eu não consigo mais visitar. Você me esperando no fim do corredor. O frio, seu cachecol. Você acordando cedo com o sol. A endorfina que me movia nas tardes de inverno. Seus lábios trêmulos, quase intocados, tão meus. A expressão nos rostos dos amigos. A ilusão do mundo mágico que se privava aos blocos daquela universidade.

Como se tudo tivesse mudado quando crescemos para fora daquele espaço. Como se crescer doesse muito. Como se o amor fosse exclusivamente planejado para me matar, todas as vezes. Pior dessa vez. As lembranças antigas transmutando lentamente. Eu sentia nossos corpos inertes no meu tapete. Suas lágrimas. Seus braços me envolvendo por completo enquanto eu chorava sua partida sobre minha cama. A atmosfera mágica, subjetiva, tão nossa. Como se meu quarto fosse um templo e nós, como santos, pudéssemos dormir juntos durante a tarde toda.

Talvez você nunca entenda. O que senti quando cruzei sua porta naquela tarde. Os horrores sobre os quais eu me permitia chorar no seu colo. Como meu coração estava disparado quando você me cobriu na sua cama. E sua respiração acariciava meu rosto quando você deitou ao meu lado, com o nariz quase colado no meu. A fortaleza segura que eu visualizava em torno de mim. Os desenhos na parede. A urgência do beijo regado pelas lágrimas que eu escorri. Você por toda a parte. Seu rosto entre minhas pernas, seus lábios nas minhas coxas, seus olhos pedindo permissão. Da dor que me abateu quando precisamos sair tão rápido do meu lugar preferido. A última vez. Eu só queria ter ficado.

Segurando sua mão como se você ainda fosse meu. E te vendo ir embora. Como se eu fosse junto. Como se aqui nada restasse, senão essas memórias.  A mandíbula dolorida após choros silenciosos. A sensação de que meu peito rasga lentamente, tão real que parece remediável.  Suas fotos, a camiseta. A visão de sua silhueta na janela. Os sonhos assustadores, a taquicardia. A falta que eu nunca sei se é recíproca.  A lua cheia. Minhas lágrimas. Seu fantasma. Minha morte. Meu amor. 

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Meu Anjo, Meu Amor

Meu Anjo, Meu Amor

Ouvindo: Sad Boy, Rad Horror

Eu vou te guardar na minha torre. O mundo lá fora não penetra minhas cortinas brancas. Não faz frio na minha cama. É macio no meu tapete, se quiser cair.
Eu vou beber suas lágrimas e transformá-las em palavras lindas. Vou cantar no seu ouvido pra ver o canto da sua boca se curvar. Vou extinguir as roupas, te segurar com tanta força contra minha pele que você vai reclamar de calor. E eu não vou ligar. Nem soltar.

Porque eu te vi indo embora sem saber que era mentira. Como refém das minhas histórias às vezes reais, às vezes fictícias. E eu vi tudo em ti. Tu em tudo. Eu tive medo de não sentir sua barba machucando minha barriga enquanto você desce. E eu queria sentir esse machucado. Por muito tempo mais. Tudo era você. Eu era você.

Eu espero que você não tenha medo. Do meu medo do que vai embora. Eu não consigo controlar as reações químicas do meu cérebro, e às vezes elas explodem. Meu eu-consciente vai te proteger de mim. Dos demônios que te assombram. Do que você quiser.

Seus olhos entreabertos. O corpo descoberto. As calças xadrezes. E a gata no colo. Minha calma. Minha paz. Fortaleza de amor pelo mundo. Deixa eu me afogar em ti. Beber você pela boca, pela mente, pelo resto do corpo todo. Deixa eu admirar você. Suas costas. Seu nariz. Sua boca pequena, macia, redonda. Eu vou te morder de amor.

Os braços que eram seus, e agora são meus. O único lugar onde consigo dormir sem acordar. E, se acordar, ver você. Sentir sua respiração quente no meu pescoço. E as mãos quentes nas minhas coxas descobertas. Tudo tem cheiro de você. No seu travesseiro, nos cobertores. E eu misturo meu cheiro ao seu. Eu rego sua cama com minhas lágrimas, eu debruço minha dor em ti. E você me abraça. Você é só calma. A beira da lagoa. A arte dos muros.

Me deixa te levar pro outro lado do estado. Pra cima das dunas, das montanhas. Te mergulhar na água salgada. Sentir o sal pinicar nossa pele bronzeada de verão. Me deixa te beijar na orla, sentir seu corpo todo, te transbordar de prazer em mim. Me deixa te levar pra uma casinha de vidro no meio das árvores, das flores, das orquídeas. Plantar um jardim em ti com minha boca. E minhas palavras. E meu amor. Te causar arrepios com a língua. Em todos os lugares. Em todos os sentidos.

Eu vou te mostrar meu mundo lindo.  Criar nosso mundo de sol. Não vai existir inverno, nem chuva, nem pais. Vai ser as tardes no meu quarto. As noites no seu quarto. A gente vai sair pra passear num barco. Você vai me contar sua calma. A Cassie vai falar. Eu vou conseguir entrar na sua cabeça por uma portinha roxa com a chave que você me deu. E eu vou levar minha espada pra matar seus monstros. Trazer seus cadáveres pra fora. Escrever tudo que você pensou duma forma linda pra te ajudar a entender.

A gente vai crescer tanto que vai explodir esse universo. Brincar com os planetas como se eles fossem bolinhas de nada. Enrolar as pernas na lua. Descobrir a beleza de tudo. Morrer de amor.
Me deixa te matar de amor.
Me deixa morrer de amor.
Meu anjo.
Meu amor.



quarta-feira, 7 de junho de 2017

Être

Être

Me fantasiava de rainha da beleza, beirando o fim dos anos 50. Sentia o tapete felpudo nas partes descobertas do corpo. O ar do aquecedor permitia a ausência da cobertura, balançando meus cachos em câmera lenta. Sentia os cílios falsos pesarem, irritando meus olhos sensíveis. A respiração lenta, que ora absorvia a fumaça contornando o incenso, ora as rosas que baseavam meu perfume, brilhando em tons de roxo sobre o bidê.

Iluminado pela minúscula luz do aquecedor ligado, meu quarto se tornava laranja. O laranja refletia na porcelana do prato que apoiava meus anéis. Ele não anulava o brilho azulado cadavérico da madrugada, que adentrava a veneziana das janelas e era, por fim, absorvido pelas cortinas.

Era melancolicamente bela, a minha solidão. Meu choro atravessava a pele do meu rosto pálido num traço tingido por maquiagem escura, terminando próximo à minha orelha direita, quando repousava sobre a pérola que atravessava o lóbulo auricular.

Eu lembrava do torpor dos dias em que precisei ausentar-me de mim mesma enquanto sentia o gosto do batom vermelho, que parecia mais escuro sob a luminescência laranjada. A dor que os rompimentos me causavam, e a dor que sinto ao projetá-los antecipadamente. O medo da possível e quase próxima necessidade da criação de novos hábitos. O novo que quase sempre me assusta.

Sentia-me terrivelmente sozinha, naquele cenário fictício. Não havia ser capaz suprir plenamente o espaço. Os olhos continuavam transbordando, as lágrimas evaporavam depressa. Retornava ao medo exagerado de fins.

A subconsciência, projetando alternativas também antecipadas, me forçava a lembrar de palavras que tive medo de dizer quando o carro parou sobre a ponte interiorana naquele dia de chuva. O beijo que não ocorreu, porque meu rosto ficou quente demais, e eu preferi olhar pela janela que ladeava o banco do carona, fingindo acompanhar o rio que corria velozmente logo abaixo de nós. Das palavras que eu nunca disse. Dos sentimentos que eu nunca demonstrei. Da mão que entrelaçou a minha tarde demais.

Com os olhos embaçados de lágrimas, vislumbrei uma minúscula fissura entre a renda e o cetim da meia que contornava minha coxa esquerda, logo acima do joelho.
Meu corpo vai partir em dois. Dois. Da dualidade do meu amor. Da dualidade do meu querer estar. E nunca estar. Sempre no limbo do “poderia ser”.

Silence was a killer too.

sábado, 1 de abril de 2017

Conto: Gato

Gato

Eu escondi meu gato no bolso da jaqueta de couro, fechando-a até o pescoço. Sentia o filhote de menos de dez centímetros acomodar-se entre o forro e meu peito, ao lado esquerdo, bem sobre meu coração. A viseira de meu capacete estava trincada, e aquele milimétrico furo era como um jato de vento gelado perfurando meus olhos enquanto eu acelerava a caminho de casa numa manhã nublada de junho.

O animal resgatado, que agora precisava ficar com a cabeça para fora da jaqueta caso resolvesse se aninhar dentro dela, tornou-se um gato gordo, cinzento e sem nome que passeava pela varanda logo abaixo da janela do meu quarto. Ele sumiu na última sexta-feira.

É bizarro porque, após uma série de eventos desafortunados como a perda de uma chave, os trabalhos que esqueci que havia acumulado sobre a escrivaninha, os pedidos de minha mãe para que eu ficasse em casa naquela tarde, um pneu furado e um espelho rachado, eu passei a perna esquerda sobre o banco estofado de minha moto e saí do terreno. Vi o gato de relance, aprumado sobre o muro ao lado direito do portão.

No final na rua, fui empurrado por uma caminhonete vermelha e barulhenta que triturou minha perna, quebrando-a em dois lugares diferentes – no tornozelo e logo abaixo do joelho. Quando cheguei em casa algumas horas depois, engessado e sustentado pelos braços de meus pais, o gato não estava mais lá. Nem na varanda, nem na janela, nem na jaqueta. Em lugar nenhum.
— Você viu o gato? — perguntei à mãe antes de deitar.
— Deve estar por aí... — ela respondeu, dando de ombros — Boa noite, filho.
— Boa noite.

Recebi 30 dias de folga, sem nem pensar em tocar o pé no chão ou mover o gesso pesado. Já se foram 12, e o gato não apareceu. Tinha sonhos sobre ele com uma frequência assustadora. Quase sempre, sonhava que deslizava a perna boa pelo lençol, sentindo sua textura e encontrando o gato encolhido, dormindo ao pé da cama. Isso se repetia algumas vezes, até que eu deslizava a perna, mas não encontrava o gato — apenas um corpo gelado que me agarrava fortemente com a mão ossuda e escalava minha perna até chegar ao peito, sufocando-me em meu sono.

Acordei assustado e ofegante no meio da madrugada, respirando com uma força exagerada para sentir se meus pulmões funcionavam como antes — eles funcionavam. Sentei-me na cama e fechei os olhos numa tentativa de parar os flashes do pesadelo, que rodopiavam infinitamente pelo meu cérebro.

Quase dois minutos após, ouvi algo raspar suavemente o vidro da janela. O gato costumava fazer isso no inverno, quando queria entrar para se aquecer, mas agora estava quente e abafado. Achei estranho, mas inclinei-me para mais perto da cortina. O mesmo arranhar, agora quase uma batida inaudível.

Nutrido pela certeza absoluta de que o gato havia finalmente retornado e arranhava a janela para que eu a abrisse, levantei-me num pé só para fazê-lo. A imagem que já havia visto durante algumas madrugadas antes dessa se projetava em minha cabeça. Tinha certeza de que veria o gato ali, com as sobrancelhas franzidas como quem espera há muito tempo. Abri a janela.
Não havia nada.

Senti ambas as rachaduras em meus ossos enquanto um calafrio gelado subiu da sola dos meus pés até meu couro cabeludo pela coluna vertebral. Estagnei. O vento gelado que bateu em minhas costas certamente não vinha da janela, que estava posicionada logo à minha frente, mas causou arrepios que me fizeram estremecer violentamente. Tentei virar-me devagar, primeiro os pés, depois o tronco, por último a cabeça. De olhos fechados, todas as histórias fantasmagóricas que ouvi durante a vida vieram à minha memória.

Abro os olhos.

Ela está ali.

A mão ossuda de meus sonhos.

Pálida e sem vida como se tivesse acabado de sair debaixo da terra.

É a única coisa que vejo fora da sombra que se projeta dentro de meu guarda-roupas.

Congelado de pânico, sigo-a com os olhos até onde supostamente está a face da criatura.

Ela sai das sombras.

Branca.

Os ossos das maçãs do rosto, projetados para fora.

As olheiras profundas e escuras que por um momento ocultam os olhos gigantes da bizarra aparição.

Um sorriso malicioso de dentes podres e fétidos que se abre cada vez mais, até quase rasgar a pele que parece com papel de seda.

Os olhos amarelos sobrenaturais do gato.

Sorrindo, as órbitas oculares esbugalhadas, sobrevoa o piso lentamente.

Ela vem até mim.


segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Ao Meu Outro Eudopassado

Ao Meu Outro Eudopassado

Das questões do meu eupassado, a quem respondo um ano após, com meu eudofuturo.

Caro Eudopassado,
temo que 2016 não tenha se saído como você esperava. A continuidade aguardada se tornou gradualmente um início completamente diferente, e eu confesso que ainda não descobri se isso foi bom ou catastrófico. Vejo ambos os lados, sempre em uma mutação constante e radical que possui picos e depressões.

Calma, isso já passou. Evaporou da sua vida há um tempo razoável e isso foi ótimo. A hora certa para uma saída (finalmente) completa e, até então, imutável. Toda a confusão, o choro e a ansiedade se tornaram o vazio, preenchido por sentimentos que arderam, ardem e ainda parecem impossíveis. Um pouco dele foi preenchido pela luz de uma relação semi pacífica que, bem de vez em quando, você consegue observar do alto.
Talvez, meio sem querer, você tenha alcançado a aquietação diante do que aflige e entendido que esta também é uma forma de iluminação.


Observo de longe que a amizade foi uma ponte necessária para atravessar um mar violento. Dada a travessia, a mente voltou ao seu estado introvertido natural. Isso não é ruim - mas também não tenho a autonomia que me levaria para dizer que se aproxima de algo bom.

O amor foi louco. Continua ardendo. O coração se preencheu de uma forma que eu não achei que existisse ou fosse possível, mesmo após tantas facas. Ele tem cabelos lindos e me apresentou um novo universo em vários sentidos. No sentimento de deixar livre. No contato físico. Nas portas abertas para dentro de seu mundo perfeito-musical-sereno-particular. Na liberdade de tornar externo todo e qualquer pensamento. Nas reflexões compartilhadas. No meu quarto nas tardes quentes. No quarto dele em dias frios. Nas mãos. Nos olhos. Na ponta dos dedos.


Descobri coisas estranhas sobre as palavras. Como se elas não me bastassem mais, mas ao mesmo tempo sempre estivessem presentes. Como se fossem minha bênção, e também minha maldição. Como se continuassem servindo - mas como complemento. Só pra suprir lacunas. Só pra não me perder no espaço tempo.
Ocupada demais vivendo presencialmente para escrevê-lo. Tornando-me a humanidade, ao invés de mera observadora de tal. Atravessando cortinas difíceis que provavelmente me beneficiarão num futuro próximo. O orgulho vem na observação da falsa calmaria passada, que forçava a manter estático.


Aprendi, de uma hora pra outra, a amar a mutação. Esses sentimentos confusos. Os choros, a raiva, a sensação de não fazer parte.
Pois tudo isso é movimento. Continuará sendo movimento. E eu amo o movimento. Eu amo a minha completa, confusa e maravilhosa condição humana.

O surrealismo da chuva e das conversas estranhas naquele cubículo escuro. E no banco de trás do carro, em um abraço de seis braços, onde amei 2016. E na miniatura de floresta, com a baunilha nos meus lábios, onde amarei 2017.