Ao Meu Outro Outroeudopassado
Meu outro Outroeudopassado,
sinto muito ao lhe informar que você está prestes a
produzir um dos textos mais difíceis que você mesmo escreveu em seus vinte
anos de vida, ou em seus quatorze anos de escrita. Não coube tudo. Você passaria anos escrevendo se tentasse fazer com que coubesse.
Chovia no fim de 2016, não chovia? Chovia lá fora. Também
chovia no seu rosto. Lembro perfeitamente do ódio e da confusão que rodeavam
seu coração doído. Lembro do contraponto – os amores abraçados no banco de trás
do carro. Lembro do medo de voltar pra casa, do ódio defensivo que você não
achou que fosse capaz de sentir – mas sentiu –, e do medo que lhe provocava
aquele ódio.
Não sinta tanto medo de odiar. Odeie. Odeie tanto que não
lhe restará nada para odiar. Só não fuja do ódio. Não o mascare. Não tente
enganá-lo. É a si mesma que você pensa, agora, que engana. Mas não engana.
Foi um comprimido que resolveu sua cabeça. Não por
completo – jamais por completo –, mas de forma radical o suficiente para lhe
abrir os olhos para dentro. Para conhecer uma personalidade da qual você não
tinha a mínima consciência sobre. Para sentir-se livre para falar, expressar,
gritar no meio de um ponto de ônibus lotado na saída da faculdade.
E se esse for o mais próximo de ti que você já se
enxergou chegando? E se você amar essa divindade?
É assim que acontece. É assim que se mergulha no abismo.
As festas foram fantásticas enquanto duraram. Foram prova
de amor, de lealdade. Foram produtoras da independência, de amizades
fantásticas, de memórias surreais e da sensação de ser dona do mundo. Não foi
real – mas o que é real, afinal?
Você saiu com louvor do caos universitário. Foi uma
despedida extremamente graciosa, majestosa, individual. A sensação de observar
o produto final, suspirar e dizer que tudo era seu... valeu os quatro anos, ou
mais. Foi esse produto, aliás, que lhe fez adentrar a fundo a maior paixão de
sua vida até então – a própria paixão, ou o amor, como preferir. Você conversou
com pessoas que jamais imaginaria existirem no âmago de indivíduos já
conhecidos, mas não tão conhecidos assim. Foi extremamente belo. Foi
gratificante observar o molde que você criou com suas próprias mãos, aquele que
duvidaram que você conseguiria criar. Continue moldando o seu próprio mundo, ao
invés de tentar moldar a si mesma para adequar-se ao mundo alheiro.
Houve o medo da perda de seu pai. O mais próximo que
chegamos do sumiço eterno daquele que você mais ama no mundo. Você nunca mais
disse que estava sozinha. Ele está sempre lá. Foi só aquele susto – talvez o
maior susto de sua vida até então – que foi capaz de lhe fazer sentir na pele a
solidão real. E ela não se aproxima da sensação de ser sozinho. Ela não chega nem perto.
Houve o término. Observando de fora, talvez ele tenha
ocorrido contra a sua vontade. Vocês choraram em sua cama durante toda uma
tarde, até as cabeças doerem e os olhos incharem. Vocês dormiram juntos,
andaram juntos. Foi dessa dor – que você obviamente não desejava –, que veio a
constatação. Não se aprende quase nada quando não chove. Talvez nem baste
chover: precisa trovoar, ventar, arrancar algumas árvores pela raiz. Você só
sente quando o chicote rasga a carne do cavalo. Ver a sombra do chicote se
aproximando não provoca efeito. Não lhe faz correr. Não lhe mata e, portanto,
não lhe faz nova.
Seria uma droga se você pudesse escolher o seu lugar.
Porque você nunca estaria no mar agitado. E são essas ondas que lhe transformam.
Você se auto sabota estendendo os braços sempre na direção daquilo que não pode
alcançar. Não é porque você precisa. É porque você é um pouco caprichosa.
Estava quase amanhecendo quando você observou aquele
grupo de pessoas bêbadas dançando no quintal. Você as amava. E você sabia que
devia estar ali, e que não estaria se o pudesse ter evitado. Foi o conflito que
lhe deu, como consequência, a glória. Talvez fosse o que você quisesse – mas não
era o que você precisa. Confie no que ocorre. Você vai entender um dia. Mesmo
que doa. Mesmo que dilacere seu coração. Mesmo que lhe mate. Você vai entender
um dia. Mesmo que demore.
Teve a paixão, também. Foi puro, extremamente belo, no
momento exato. Lembro sempre daquele quarto. Lembro das sobrancelhas que
franziam enquanto o anjo citava Nietzsche. Lembro-me da paixão por Cobain, do
corpo mais perfeito que já beijei – do topo da testa até os ossos salientes da
bacia. Houve os cigarros, as drogas, o sentimento de segurança mais rápido que
já lhe aconteceu. Ele lhe salvou, você o salvou. Vocês viram seus filmes favoritos
juntos. Ele gostava dos tons amarelados de Lars von Trier. Sua mente era
caótica. Você aprendeu a amá-la. Você sente sua falta.
Os amigos. Muitos. Talvez as pessoas mais bonitas que
você já conheceu num período temporal razoavelmente curto. A lealdade traz
recompensas particulares mais valiosas do que qualquer outra coisa. Eu não
trocaria todas as riquezas do mundo pela entonação relaxada da voz de quem me
fala calmamente de seus sentimentos. Não trocaria cristais pela sensação de
estar no lugar onde deveria, ouvindo quem deveria. Não trocaria. Eu sou assim,
também.
A tempestade passou.
Você sabia que passaria, não sabia?
É aqui que você deveria, deve, deverá estar. Tudo que
ocorreu serviu para lhe trazer – mesmo que violentamente, contra sua vontade
egoísta – para esse lugarzinho iluminado. Esse lugarzinho exato, divino. Esse
lugarzinho seu, maior do que qualquer lugar ao qual você já pertenceu antes.
Você sempre soube que só havia beleza verdadeira no
vermelho violento do sangue.
Agora, sinta sangrar.