A Ninfa e o Monstro
"Quem luta com monstros deve velar para que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. Se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti." (Friedrich Nietzsche)
A casa está vazia. O farfalhar das folhas é o único som
presente. As cortinas de renda permanecem estáticas sobre as venezianas
abertas. A constelação fluorescente no teto emana uma luminescência azulada.
Olhos azuis me encaram do pôster na parede.
É tarde. Quase três. O horário em questão faz explodir
memórias que tento há, quase trinta dias, ignorar. A tarefa mostra-se
impossível perante à solidão escura.
E não há palavras que acalentem, abraços que afastem,
mãos que espantem ou canções que aliviem A Ideia. A Ideia. A Ideia que anula
qualquer organismo lógico semelhante e sussurra que tudo sumirá comigo em
breve. Enquanto não some, porém, vaga por minha mente como uma alma penada sem
direção.
Diferente. Desconfortável. Aterrorizante. Desconhecido.
Poderia passar a eternidade buscando palavras e tenho certeza absoluta de que
nenhuma retrataria com exatidão o sentimento abrasador que mata o que existe –
se é possível que ainda haja algo – em meu coração.
A fusão de ódio, saudades e raiva das saudades, tolice,
masoquismo, desejo de vingança e (talvez) empatia se torna uma bola de neve
pesada e insistente, pronta para despencar e extinguir a chama minúscula de
esperança que tento corajosamente manter acesa.
O monstro de asas negras reaparece para sussurrar ao pé
de meu ouvido. Ele conta histórias sobre sentimentos que definham no canto
escuro do quarto que poderia ser minha mente. Aproxima-se lentamente,
respirando ruidosamente e propagando um odor familiar. Força memórias sobre as
quais não tenho controle. Faz-me divagar sobre elas.
Ele costuma me pegar durante o sono, quando tudo parece
tranquilo. Traz a tona a sensação de braços em volta de minha cintura, um
coração acelerado batendo contra o meu próprio, do perfume não tão familiar, do
medo, da angústia, da ausência de necessidade – pois tudo que eu desejava
estava parado diante de mim afinal –, da falsa esperança antes do retorno do
ceticismo comum. Acordo desesperada, a taquicardia sempre presente, os olhos
esbugalhados, a respiração descompassada e um turbilhão de pensamentos
suicidas.
Outra parte de meu ser, que dá-se pela janela minúscula
no mesmo quarto citado anteriormente, tenta segurar meus punhos com seus dedos
de cetim. A ninfa da esperança, que imagino como, literalmente, uma ninfa,
diz-me suavemente com sua voz de anjo que devo continuar andando. Que os
vislumbres do passado não passam do som de passos que me seguirão para sempre e
que aprenderei, com o tempo, a ignorar por completo. Que ainda há chão a ser
desbravado, que a coragem acesa em meu peito nunca foi apagada por completo.
Que não tive, tenho ou terei medo de cruzar esse mundo sozinha. Que tudo está
maravilhosamente bem há muito mais tempo do que horrivelmente ruim, apesar de a
segunda opção ter-se feito mais frequente nos últimos meses.
Quando saem por entre seus lábios os sussurros sobre
perdão, porém, o conflito começa.
O mesmo monstro de asas negras salta de um dos cantos da
sala com uma ferocidade superior a qualquer adjetivo. Com suas garras contorna
os pulsos da ninfa e grita, rude, todo o ódio que mantinha trancado dentro de
si. Grita sobre uma vida arruinada, sobre um coração partido. Sobre olhares
quebrados que se cruzaram por tantos dias, agora cansados. Sobre promessas. Sobre o ser que,
após pisotear seu semelhante até a quase morte segurando mãos alheias e
escondendo delas toda a verdade por trás do “amor” que sentia, apropria-se do
direito de condenar a mentira. Sobre a espera pela resposta que nunca veio.
Sobre abrir mãos de toda a liberdade que havia conquistado para acolhê-lo de
volta, mesmo em pedaços. Sobre a covardia que teme a verdade e, novamente,
sobre promessas. Sobre a ausência do amor que se dizia recíproco nas piores
noites de sua ‘protegida’. Sobre egoísmo. Egocentrismo. Materialismo.
A ninfa cai em prantos, ainda apontando os dias de um
passado distante, onde o amor poderia, supostamente, ter sido recíproco. Tenta unir,
com as mãos frágeis, os pedaços do coração antes inteiro, completo, e
estendê-lo a outro, que acaba cortado até a alma pela frieza dos cacos
brilhantes. Começa uma busca desesperada pelo positivo, pelo feliz, pelo
passado, mas seus olhos estão cada vez mais cansados, suas veias cada vez mais
finas e seus ouvidos cada vez mais surdos pelas palavras pessimistas entonadas
gravemente em conjunto ao som do baixo.
O monstro senta-se, impotente, ao seu lado. Cansado da
luta. O coração latejando de dor. Ambos me encaram friamente, à espera de uma
decisão. Acordo.
Por um momento sou pega pela claridade inesperada das
estrelas fluorescentes, mas tudo continua estático, igual. Me pego sozinha, na
casa vazia, esperando o torpor terminar. Sento-me num pulo, o cansaço mental
novamente presente, numa tentativa desesperada de chorar. Mas as lágrimas
mantem-se firmes, presas numa caixa sem expressão, junto com tudo que me foi
levado embora. E a fantasia se esvai. E a situação é a mesma. E tudo parece
igualmente ruim. Monstro e ninfa, ninfa e monstro. Presos no quarto que é minha
mente. Lutando eternamente. Essa guerra sem fim.