terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Inferno

Inferno

"Now I'm trying to wake you up, to pull you from the liquid sky,
'cause if I don't we'll both end up with just your songs to say goodbye."

Corri por tanto tempo que estava crente de que havia alcançado uma distância segura. Atravessei vales, rios e florestas, alcancei o pico mais alto que em minha mente existia. Respirei o ar puro do topo e tive a certeza de que estava finalmente limpa. Tudo para cair pela centésima vez na lava escaldante do inferno que pensei ter deixado para trás.

Existe um tipo muito específico de desespero, que funde raiva, dor e saudades insuportáveis numa grande nuvem negra de tempestade. Ela vem lentamente do horizonte, mais amedrontadora que um ciclone, arrancado todo o resquício de felicidade que encontra pela frente. E quando digo todo, penso no sentido literal da palavra. Amigos, colos, beijos, mãos, perfumes, canções, livros... Carrega tudo com ela, fazendo com que a massa obscura presente em sua composição se expanda mais e mais, até cobrir minha cabeça, meu corpo, minha alma.

A nuvem costumava surgir com frequência naqueles momentos onde o quarto é escuro e você tenta descansar, fechando os olhos. Hoje sua aparição é mais frequente – fato que não a torna mais confortável, e sim perturbadora. Não consigo escapar de seus relâmpagos, mesmo que feche os olhos com toda a força que tenho. Ela nunca vem sozinha. Sempre traz consigo os enjoos, tremores, frio e a sensação horrenda de que meu um metro e sessenta e três passou a um milímetro de repente (o que infelizmente não é verdade – se fosse, procuraria me esconder no jardim e viver com as formigas para sempre).

O principal sentimento que me cerca nesse inferno particular é o medo absoluto. Acredito que o medo seja menos cruel a quem costuma senti-lo mas, céus, eu nunca tive medo, e agora ele se apodera de meu ser como febre espanhola. Traz à tona imagens de caminhos separados, da única coisa que foi meu “lar” andando para longe. Muito em breve. Ele sibila ao pé de meu ouvido que as horas se tornaram dias, e que os dias se tornaram meses, e que os meses logo tornar-se-ão um ano inteiro jogado no lixo oscilando por ele. O ano que bateu o recorde de mais ‘adeus’ do que ‘olás’.
O desespero que o medo me causa é tão fulminante, tão forte, que quando ataca poderia facilmente me conduzir aos pés alheios implorando por perdão – o perdão por um crime que nem sequer cometi.

Depois, vem a raiva. Raiva porque não fiz nada de errado, propriamente dito. Raiva porque ocultar informação não é mentir. Raiva porque me foi feita uma promessa agora descumprida. Raiva porque ninguém é obrigado a ficar parado enquanto o outro traça uma trajetória segurando mãos de personagens terciários. Ferve em meu peito a vontade de gritar-lhe sobre masoquismo, egoísmo. Sobre o frio que me deixou sentido por tantas vezes. Sobre covardia. Vaidade. Egocentrismo.
Mas logo cessa. Porque no fundo tudo o que berrei não pareceram ofensas, e sim partes da composição do ser que não consigo, mesmo que tente com toda a força, odiar.

E, por fim, as saudades...
É cortante, doloroso e pungente estar preso num escudo que te impede de libertar-se das memórias agregadas ao cérebro. Principalmente quando o escudo em questão é meu próprio corpo. Montado por minha pele pálida, minha cintura estreita, meus cabelos longos e principalmente minhas mãos pequenas.  
Hilário pensar que não houve nada, mas explosivamente doloroso correr os dedos sobre esse minúsculo pedaço de renda branca e imaginar que seus punhos fortes jamais a farão em pedaços. Pesaroso, ao ver como meu cabelo reflete mechas cobre ao sol, lembrar-me de meus dedos transpassando seus próprios fios, puxando-os delicadamente com as sobrancelhas franzidas. Arrebatador pensar na facilidade com que ele me puxava para perto, ambos os braços contornando minha cintura e polegares massageando minhas costelas.
Dá vontade de chorar. Gritar. Chamar para perto. 

Não quero, ao atravessar aqueles portões, ter a mesmíssima sensação que tive há cinco meses. Não quero os olhos castanhos se estreitando com indiferença. Não quero fazer uso de minha expressão neutra novamente. Não quero corações partidos. Não quero corredores que portam memórias. Não quero esquivar aqueles olhares dolorosos de mundos que se separam.
Quero abraços. Histórias. Aventuras, promessas, estradas, gasolina. Quero amor fulminante. Quero meu abrigo de volta. E eu sei, com toda a certeza, como ele se chama.
(só não sei, dessa vez, sobre a costumeira volta)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Matéria

Matéria

Hoje há um lindo céu. Todas as estrelas, ontem ocultas pela névoa, brilham tanto que ofuscam os olhos. O silêncio é substituído por sons de folhas e insetos dançantes, e o caderno aberto sobre a escrivaninha ainda mantém em segredo minhas confissões de gratidão.

Existe agora, após uma quantia exata de dias, horas, segundos, uma espécie de conforto na quase-tristeza que me cerca. Há quase-exatas 24 horas, quando tudo ocorreu novamente como um dejavú ou um pesadelo que sempre retorna para tomar-lhe o fôlego, meu coração disparou. Por cinco minutos. Os cinco minutos da surpresa pós esquecimento ou ceticismo sobre algo que desde o início, eu sabia, aconteceria de novo. O diferente, desta vez, foi que eu soube exatamente para onde correr.
Abri a janela. Aspirei profundamente as partículas geladas. Lavei a alma. Sem lágrimas.
Eu, sozinha. Eu, inteira. Eu, independente. Forte. Corajosa. Nascida em batalha. Eu. De verdade. O que fui antes, numa versão aperfeiçoada.

Quando observo as constelações iluminadas com os olhos transbordando em lágrimas de vitória, confusão, tristeza, conforto e um turbilhão de sentimentos tão infinitos como o universo, sorrio tranquilamente. Pensando que a poeira das estrelas que brilham sem motivo, sem consciência, sem questionamentos, é a mesma que molda meus ossos proeminentes. Que o ar que sopra as asas das centenas de insetos invisíveis é o mesmo que preenche meus pulmões. Que o sangue pulsando por minhas veias continua sendo bombeado graças ao cuidado de centenas, milhares, milhões de seres humanos.
Cruzando os braços arrepiados, ainda sorrindo, me dou conta de que nem eu, nem o universo sabemos das razões ou consequências de nossa própria existência. Conclusão que não leva embora o fato de sermos infinitos. Intrigantes e belos e tristes e maravilhosos. Sem saber de absolutamente nada.

Dou-me conta de que todos, em toda a parte, felizes ou não, conectam-se entre si. E incríveis, exatamente como são, conectam-se, juntos, ao universo. 
Somos, no fim, frutos da mesma matéria.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

São Quase Três

São Quase Três

Ouvindo: Nothing At All, Gentle Giant

Eu dormi demais, e já são quase três. São quase três e o céu faz jus, sob uma espessa camada de neblina alaranjada, ao meu estado de espírito. É escuro, frio, pálido e estático. Sem vento, como se uma espécie de força sobrenatural abraçasse árvores e seus galhos fortemente, não cedendo espaço a movimentos bruscos, implorando por calmaria. Em algum lugar, sob todas as nuvens e serração, escondem-se as estrelas cujo pó passeia por meus ossos e, claro, minha doce companheira Lua. O ar que preenche o jardim sob minha janela aberta transporta o mesmo cheiro frio e confortável do inverno. E agora sim, já são três.

Ouço o sussurro suave que se mistura ao manso dedilhar de cordas de aço, murmurando calma. Calma. Calmas. Contando-me sobre o orgulho da (suposta) força estratosférica que tem fluído por minhas veias no último mês. Seus lábios se arqueiam como uma linha reta que, de repente, adquire forma. Os meus são salgados por lágrimas.
Porque eu “tenho me saído bem”. Bem, com seus braços em minha volta, sob enormes nuvens cinzentas de chuva. Bem, me sentindo gigantesca com sua cabeça apoiada em meu peito. Bem, brincando de compor canções. Bem, até ficar sozinha. E eu tenho estado muito sozinha.

Agora, na solidão escura cercada por neblina, minha mente se enche de pensamentos sobre aquele que provavelmente, nesse exato momento, acelera alguma coisa por uma rua vazia. Vento em seu rosto, vento congelando suas mãos. Vento. Céu. Estrada. Como a bela cena do romance que nunca escrevi. Nem presenciei.
E memórias. Memórias ainda frescas sobre o perfume que pela primeira vez me pareceu familiar. Sobre mãos tão exatas. Braços tão grandes me envolvendo por completo em meio a tantas pessoas que não faziam ideia sobre a felicidade que rompia meu peito e me dava vontade de gritar. Era lindo. Especial como me parecia nos primeiros dias. Naquele momento, ignorei todo e qualquer pensamento que beirava sensatez, que gritava sobre a outra garota o esperando em outro canto do país e sobre meu próprio garoto, me esperando do lado oposto da cidade. Rendi-me aos abraços apertados, às canções que jamais serão simplesmente “canções” e à vontade fulminante que ficara presa por tantos e tantos dias em meu peito e era, enfim, libertada. Mesmo que não completamente.

Quando voltava para casa naquela mesma madrugada, com o sol apontando seus primeiros raios e nuvens ficando lilases e cor de rosa, sentia como se tudo já tivesse sido resolvido. E apesar da dor que sufocava todos os meus músculos após horas ininterruptas de pulos e danças que não existem, minha mente estava calma como as folhas do jardim estão agora. E uma estreita tira de Lua sorria no topo, me observando timidamente. “Viu? Eu resolvi as coisas.” Sussurrei. E ela não respondeu.

Agora, por detrás das nuvens, tenho certeza que essa mesma Lua observa de algum ponto minha total certeza sobre algo que deveria ter sido mantido para sempre no patamar da INcerteza. Ela ri audivelmente de meu pavor enquanto imploro “por favor, não me faça escolher...”.
Porque se escolhesse, Lua, seria ele. Seria ele para sempre. E, para mim, ele não existe. Não pode existir. Porque ele foi embora com ela; escolheu ir embora com ela. E me deixou na escuridão. Merecendo ser abandonado de volta.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Conto De Ninar

Conto de Ninar

Amor, meu novo amor. Quero lhe contar uma história de dormir. O farei enquanto sou assombrada pelo encanto de sua aparência maravilhosamente fantasmagórica. Ela se funde com as sombras de uma madrugada iluminada pela lua cheia, indo embora. Você me pega pelos ombros e me afasta, mas giro em meus calcanhares para acompanhar sua saída com os olhos. Até a esquina onde desaparece. Então meu sorriso de esvai.

Antes de começar a história verdadeira, amor, preciso lhe contar sobre como não sabes o quão adorável és. Você me fitou por pouquíssimos segundos e esquivou-se rapidamente, como se eu fosse toda a beleza sob o céu, enquanto seus olhos cintilavam como galáxias, e seus lábios moviam-se como lava – você era o fantástico, o esplendoroso, o especial. Vi em seus olhos âmbar o que já esteve em meus olhos âmbar ao encarar um ser do inverno. E eu não sabia, envolvida por seu cheiro doce, se estava pronta para tornar-me o que você chamaria de “seu ser do inverno”.

Seres do inverno sugam esperanças com beijos. Eles são, para suas vítimas, as criaturas mais belas do universo. Seduzem-nas sem mais nem menos, quase sempre inesperada e magicamente, e lhes oferecem esperanças sobre um futuro que nunca acontecerá. Imagens de si mesmas em frente a uma montanha coberta de neve, correndo por uma floresta encantada, segurando sua mão para afastar o medo. Imagens de livros, discos... imagens de uma vida inteira. Como se permanecessem imutáveis e lhe transformassem no melhor de você. Para sempre.
Quando sugam sua alma com toda a força, segurando a vítima entre os braços, os seres do inverno morrem. Não por completo, mas quase. Desaparecem, deixando seus reféns antes virgens de amor desesperados e loucos como pássaros amedrontados. Eles sempre voltam. Uma, duas, três, quatro vezes. Então vão embora novamente, carregando toda a sua esperança consigo. Nesse ponto você se vê exausto, trêmulo, quase morto, mas respirando de alguma forma, impulsionado por livros, pós-punk e álcool.

Nesse ponto, então, eu peço desculpas por ter-me tornado um ser do inverno. E lhe conto que tudo o que sou faz parte de uma grande fantasia. Tudo o que sou diante de seus olhos, ao menos. Meus devaneios são frutos de pesadelos infinitos, noites incontáveis de um choro incessável e tentativas vãs de viver do ócio. Não é adorável. Não é bonito. Não é possível despertar-me emoções duradouras. E eu choro em seus braços inocentes pela morte de outro alguém.
Oh, sim, amo um cadáver. Amo o cadáver de alguém que esvaiu-se após quatro semanas. Da pessoa mais bonita, fantástica, literária que se possa imaginar. Do ser do inverno que me deixou desamparada naqueles dias de frio intenso, que pintou um céu azul e voltou para colori-lo de cinza. Do alguém que me fez descobrir as melodias e letras mais maravilhosamente tristes que existem no mundo. E que me fez escrever. E gritar em silêncio. E tentar desvendar mistérios. Alguém que não existe mais.

Não quero, deus me livre, tomar-lhe o brilho. Nem roubar quem és, nem deixa-lo perdido em você mesmo, ou fazê-lo sentir frio. Não quero te fazer sussurrar meu nome às três da madrugada. Não quero suas lágrimas. Não quero seu amor virgem.
E eu juro, eu adoraria desvendá-lo da maneira correta, por camadas, com o maior carinho do mundo. Pois apesar de fria e morta, sou capaz de enxergar sua aura misteriosa. Única. Intocada. O que me impede, amor, é que meu estoque de curiosidade, paixão e esperança encontra-se esgotado. Esgotado por muito tempo. Talvez oitenta anos. Talvez pra sempre. E eu não quero mais, ao te abraçar pela cintura, precisar esconder lágrimas de luto pelo que já se foi, e não posso recuperar.
E apesar de sorrir de satisfação ao lembrar de seu calor de Marte, algo me impede de roubá-lo de si mesmo. E você apoia sua cabeça em meu peito como se fosse pequeno. E eu te sussurro na escuridão:
“Fuja, pássaro intocado. Corra pela noite. Por sua alma. Por sua liberdade. Por você.”
E você vai.